domingo, 7 de março de 2021

A CODA de Ray Bradbury

Tempos passados eu consumi algum material sobre o mercado editorial, principalmente alguns vídeos do canal  "Projeto Escrita Criativa". Inclusive escrevi lateralmente algo a respeito do mercado editorial neste post (Silver Linings Playbook - O Lado Bom da Vida - contém SPOILERS). Justamente por isso quero voltar ao assunto depois ao ler Farenheit 451 de Ray Bradbury publicado pela editora Biblioteca Azul. Farenheit 451 é um distopia publicada em 1953. Que ganhou duas adaptações para o cinema e recentemente teve um "revival" devido à polarização política atual, apesar de na trama de Bradbury não haver quase nenhuma disputa política. Há sim, normas que consideramos absurdas mas que parecem ter sido escolhas feitas por aquela sociedade do livro que optou por uma "vida simples" abrindo mão de tudo que a levaria a "sofrer". E na história "vida simples e fuga do sofrimento" significava evitar tudo que fosse complexo, que requeresse pensamento crítico, relacionamento pessoal mais profundo e optaram por uma vida passiva, consumista, drogada e de puro entretenimento. Parece com algo que você vê atualmente ? Eu fiquei me perguntando como uma sociedade dessa se sustentava ?

Pois bem voltando ao tema do post, ao final do livro, terminada a história do livro, há uma "CODA" !
Você não sabe o que é uma coda ? Eu também não sabia. Coda é um termo da área artística e significa o que está abaixo:

No final do livro havia uma coda. Havia uma coda no final do livro. 
E a coda não tratava nada sobre a história em si, mas sobre como pessoas de todos os tipos e lugares entravam em contato com o autor, assediando-o, para ele modificar suas histórias conforme seus interesses.
Ray Bradbury
Bradbury abre seu coração sobre sobre as mais diferentes pressões que lhe chegavam pedindo alterações em seus livros, pressões de leitores, de editoras, de instituições sugerindo alterações sobre como tornar a história mais ao seu pendor, nem que para isso a história fosse empobrecida, desvirtuada, desfigurada, deformada. E num desabafo ele manda às favas todos aqueles com suas pedidos sem sentido, sem alinhamento com a história. Demandas estranhas, alienígenas, sem o traço criador do autor. A coda é um desabafo tentando dissuadir e mostrar quão inconveniente é pressionar um autor para alterar sua criação. Só porque você leu não deve sugerir mudanças como se o escritor fosse um decorador que você contratou para decorar sua sala, como se fosse um profissional contratado para lhe entregar um produto.
 
"...para o quinto dos infernos"
Bradbury literalmente age "...Despachando o conjunto de idiotas para o quinto dos infernos". Para Bradbury, tal atitude assemelha-se aos bombeiros de seu livro Farenheit 451. É uma atitude incendiária, destrutiva. Bradbury deixa claro que sua obra não é negociável. Talvez porque em seu tempo e devido sua história pessoal e claro, devido à posição que havia galgado, ele não aceitaria mudanças, não flexibilizaria situações, personagens e nem sacrificaria seu imaginário porque alguém gostaria que algo diferente acontecesse em suas histórias.
Veja que Bradbury já era famoso e calejado e podia sim fazer tal desabafo, mas o que podemos dizer de novos escritores não publicados e pouco conhecidos ? Para estes a tais sugestões tem outro peso e dificilmente poderão se impor ante a exigências de mudanças.
 
"...Rangendo meus pré-molares até esfarinhá-los"
Para se ter ideia do quão variados são esses achaques uma universidade lhe comunicou que dificilmente ousaria encenar uma peça "Leviathan 99", pois não havia nenhuma mulher nela ! A universidade temia que uma organização feminina iria atacá-los com tacos de beisebol se eles  tentassem  tal apresentação. Bradbury furioso rangendo meus pré-molares até esfarinhá-los, ironizou a situação informando que não mais poderiam apresentar "Os rapazes da banda" (só homens), nem "The women" (só mulheres) nem as peças de Shakespeare que originalmente até os papéis femininos eram desempenhados por homens e que quase todas as boas falas são de homens.

Escrevam seus próprios livros
Nós como consumidores e leitores de conteúdos jamais teremos ideia de tudo que ocorre no processo de produção de obras em geral. Todos os fatores que concorrem para torná-los bons, ruim, ótimos, inovadores, pífios, medíocres, excepcionais, etc. Pois cada elemento envolvido no processo atua de modo a modificar o produto final. Então se hoje temos obras com as quais nos encantamos, criadores, autores que nos surpreendem devemos sim reconhecer o talento e deixá-los ter sua liberdade e licença poética para se aventurar em suas criações e se nada lhe agradar... siga o conselho de Bradbury: "Escrevam seus próprios livros !!" e assim você terá uma criação que será sua imagem e semelhança. 

No parágrafo final da coda Bradbury faz a seguinte analogia com uma partida de beisebol:
 
"Todos vocês, juízes, voltem para as arquibancadas. Árbitros, para os chuveiros. A partida é minha. Eu arremesso, eu rebato, eu apanho. Eu corro as bases. No poente, ganhei ou perdi. No nascente, saio novamente, fazendo a velha tentativa. E ninguém pode me ajudar, nem mesmo vocês."

Última página da coda